ESCUTAMOS O PORTO
Escutamos o Porto: os passos dados sobre as lajes; vozes soltas,
feridas; falas num português perdido.
Descemos da Sé para a Ribeira. Essas mulheres que gritam estão vivendo
entre pedras ainda. Caminhamos no lixo. Vamos atentos à solidão das pedras, à
forma destas casas que deveriam estar apodrecidas. A redução da luz conserva as
suas tintas, embora mortas, vivas. Cores indecifráveis, vermelhos espessos,
obscurecidos. Amparam cheiros fétidos, penumbras. E o rio resume tudo isto:
mulheres lavam na água destruída: roupa, sabão e cascas de laranja; em torno, a
água grande, verde e íntima.
Água estreita, granito, como a Vila. Na Rua de Cimo de Vila começamos o
caminho de Domingos Peres das Eiras. É esse o nome, o verdadeiro nome de
Eugénio de Andrade? Que nos conduz na sordidez e no esplendor da Vila. Tu duca,
tu segnore, e tu maestro.
Sem culto, a Igreja de São Francisco é uma gruta de talha onde se
deslocam aves, as mesmas que Eugénio de Andrade vê junto ao cais, sobre barcaças
negras. Depois, aquele muro branco, dele e de José Rodrigues, diverso dos muros
brancos do Sul, escuro, parede de uma rua onde vozes de crianças - tão
exteriores ou interiores a nós, que são repentinamente as de William Blake -
jogam.
E ao teu encontro vem/ a grande ponte sobre o rio.
O frio sobe do Douro, a cidade expõe as suas luzes.
Escutamo-nos.
Gastão Cruz
in: “Ao Porto” Colectânea de Poesia sobre o
Porto
Adosinda Providencia Torgal
Madalena Torgal Ferreira
lido por David Cardoso
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