quarta-feira, 19 de junho de 2013

Vou falar-vos de uma amiga



Vou falar-vos de uma amiga tão distante tão irmã que
Nos confundimos uma na outra
Da história que me contou dentro das quatro paredes
Redondas como uma lágrima e densas
Como a solidão de uma cama vazia.
Era uma vez uma menina
Pobrezinha mesmo.
Não nasceu como nascem as outras meninas
Não foi nem o Espírito Santo
Nem nasceu numa manjedoura
Nem veio no bico dourado da cegonha
Nem veio da terra dos franceses
Nem veio de dentro de uma abóbora
Nem sequer de uma folha de couve
Ela foi assim botada na vida
Assim tão sem jeito de contar
A modos que nasceu e viveu dentro de si
E tornou a nascer e a viver
E vai morrendo assim devagarinho.

Falou do Porto velho e sujo
Jardim da Cordoaria Jardim das Criadas
Magalas e manguelas rufias
Velhos senis e cães com fome
Prostitutas proxenetas e maricas
Onde as pobres crianças pobres brincavam
Ao Pilha Galinha Choca
E ela a fugir da polícia que corria atrás dela
Não pisar a relva por favor! Ainda faço queixa à tua mãe miúda
Brincavam ao ana-ina-não-ficas tu eu não
Mas ela ficava sempre e tiravam a sorte à sorte
E a sonhar fugia para o lago e com os patos
Repartia o pão cantava e chorava
As penas dos patos as nossas penas.
Jardim da Cordoaria
Jardim dos meninos sem jardim
Dos meninos velhos sem infância
Sem janelas sem sol sem estrelas
Ao ver os pássaros voar chorava
Por não poder voar ir pelo céu adentro
Ir até às estrelas qual pássaro avisador
Ir onde houvesse jardins mas
Com crianças mesmo
O importante era ir e não ficar ali esquecida
E o velho coreto onde a banda tocava música
Música ao longe que não entendia mas gostava
Bom barqueiro bom barqueiro deixai-me passar tenho filhos pequeninos não os posso criar …

Bazar dos três vinténs
O burro vai à feira por três vinténs
Maravilhoso mundo infantil
Das crianças bem na vida
Das crianças família
Mas não do meu mundo
Não do Porto que viveu
Lembras-te daquele narizito
Colado nos vidros das montras
Por ironia de nariz colado achatado
E que chato já o sinto chato
E é chato ver a vida a correr além do vidro
Ah-ah-ah minha machadinha quem te pôs a mão sabendo que és minha…
Praça dos Leões e a água sempre a correr
Leões alados onde estão as vossas asas
As vossas capas negras onde estão
 Vocês eram a força o saber o futuro
E sabia ela as suas limitações
E sabemos nós as nossas frustrações
E gritou porque foi que toda a ignorância
Toda a ignorância se alojou em nós
Leões alados vós sabeis porquê

Sophia! Em ti convoco a nossa Praça
E o soldado desconhecido
E o passarinho que lá encontrei
Cuidou dele com desvelo
Teve por caixão uma velha caixa dos sapatos
Dos velhos sapatos de ver a Deus
E lá estava a estrela
Mas de basalto que outra não podia ser
Era também a estrela do actor António Assumpção (que está nas estrelas)

E o ceguinho com a menina a cantar
A cantar as cantigas de cordel
Histórias de faca e alguidar e chorava
Santa Mãe que estás no Céu oh mãe
Pede a Deus pelos teus filhinhos sim
Por causa da minha madrasta que ela dá cabo de mim

Havia uma grande loja O Chiado
Fitas de mil cores tanta coisa linda
Fitas de mil cores mas só para ver
Ver como te vejo a ti
De mil cores se vestia em pensamento
Que outra coisa não podia ser
Houve sempre uma vitrine! E o Rei dos Botões e as continhas
Meu senhor por favor dez tostões de continhas pra enfiar
Minha menina mas de que cor
De mil cores meu senhor
Enfio enfiarei sentada numa almofada enfio continhas d’ouro
Salta cá minha esposada.
Santa que salta guardava no bolso
O sonho feito continhas
Santa que salta manca que manca
Oh condessa condessinha
Condessa de Aragão…

Tim tim Havia o carro eléctrico era amarelo amarelinho
Se alguma janela aberta o incomoda
Peça ao revisor que feche.
Bancos de palhinha era amarelinho
Senhores Passageiros chegar a frente p. f.
E eram encontrões, empurrões e apalpões
Olha o filho da… que me apalpou o cú
E o mar lá estava a perseguir-me e eu a ele
E ele lá estava
E já havia rochas sol mar
Era tão bom ir até lá longe
Ir até a foz ver o mar 
E trazer o sal na minha boca e aí ficar Até hoje
E dizia-me Sabem o que é viver no meu Porto
Não neste Porto mas no meu Porto
Com as suas noites cheias de sombras e de história
E das sombras profundas nos olhos do Sr. José
O barbeiro poeta lá da rua
E a paixão diziam por uma menina rica
Que estava sempre escondida pela cortina
E a batateira sempre a espantar a canalha espantada
Carlinhos da Sé atarefado de cesta no braço
A vender lindos aventais de chita
Eram lindos os retalhinhos para as bonecas
Era arreliado pela canalha
Gostávamos um do outro uma piscadela de olho

O Palácio de Cristal agora feito um espremedor
Ir lá era dia de festa ver os cisnes no lago
Flores e animais comer a língua da sogra
Barquilhos camarilos tremoços
A fava rica camarinhas ou pérolas
Um sorvete de dois tostões do feitio do meu sonho um barco
Pirolitos e com a bolinha jogava ao berlinde era bom
Sou primas sou sigas sou trigas

Igrejas do Carmo São Bento Congregados
Onde mulheres gastas cor das pedras
Crianças velhas por viver
Olha O Notícias Janeiro Comércio
Meninas mulheres cheias de barriga até aos dentes
Pelas crianças flor em botão
Pelos velhinhos sem lar nem pão
Cheias até à ponta dos cabelos incertos
Cheias de fome e de filhos com fome
Ó home deixas-me pra’qui botada assinhe
O seu homem tinha morrido estrubeculoso num baz home dizia ela
Ó qrida lebeme um raminho de bioletas
Pela alminha de quem lá tenhe
Quinda não me estriei minha qrida
Vendiam atacadores pentes
Esticadores pr’ós colarinhos Quem quer
Com os seus pregões feitos gemidos Quem quer E ninguém queria

Fui ao São João à Lapa ai da Lapa fui ao Bonfim
Estava tudo enfeitado com bandeirinhas de cetim
São João com alho porro manjericos
Erva cidreira cravos vermelhos e farturas
Doce da Teixeira a regueifa quentinha com manteiga Vianeza
O cabrito a assar na padaria com batatinhas
A sardinha fresca na brasa nas Fontainhas
O Notícias a sair quentinho com as quadras sanjoaninas
as orvalhadas e a murrinha e os arrolados
Oh Sr. Polícia cheire o meu alho Porra
Foge rapariga se te apanho nico-te
E saltavam a fogueira e saltava o coração Olha o balão
Balão cai cai na quinta do teu pai…
E os balões a pontear o céu e as cascatas com os santinhos dos santeiros de Gaia
Enfeitados com pratinhas brilhantes de todas as cores
E papeizinhos de rebuçados Era tão linda a minha cascata
Oh meu Senhor dê-me um tostãozinho para o São João
Oh minha linda menina mas o São João também come
Oh carago é para a cascata meu Senhor
Toma lá cinco tostões menina
Sou primas sou sigas sou trigas
E a correr, lá íamos comprar cinco tostões de Vitórias
Oh pá já tens o bacalhau? Não? Oh…
E o cabrito? E a cobaia? Oh porra qu’azar
E alho porro senhora comadre dar o alho a quem sabe…

Mas o mais difícil é falar da minha rua
Por pudor ou receio de vos chocar
Não me reconhecem lá na minha rua prisão
Rua fria feia rua sombria
Rua de ódios de raiva funda
Calada bem dentro de mim
Rua das vidas mal vividas
Rua sem calor nas almas feitas de pedra
Olhem-me bem de frente Reconhecem-me?
A minha rua suja e pobre
Rua de pouca gente boa sem história
Rua dos obscuros sentires
Rua sempre molhada escorregadia
Rua dos amantes do amor por tabela
Rua do amor vendido no vão de uma escada
Rua do amor alugado nos sexos apodrecidos
Rua do desamor rua do ciúme
Rua dos cães sem dono e sem coleira
Rua dos mendigos esperando as sopas
Rua das esperas nas esquinas
Rua da cadeia sem cadeias que nos liguem a vida

Sou o que resta dessa rua sem sol

A minha rua era assim

Aurora Gaia

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