quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

CRIANÇA COM UM SONHO DE POESIA

 
CRIANÇA COM UM SONHO DE POESIA
 
Também já fui criança
e ria com força para não chorar quando meu Pai regressava da Taberna e entrava aos berros pelo Bairro dentro.
Quando fui criança não tive outro remédio senão tornar-me adulto.
Não havia outra maneira de viver.
Os meus colegas, miúdos lá do Bairro do Torne, não tiveram oportunidade de saborear as brincadeiras, nem o feitiço das cores e dos sons, a magia dos sabores e o lento folhear das estações. Quando era criança andava viciado no SONHO. Era o sonho que me guiava nos dias.
Imaginava os lugares do Mundo que vinham nas revistas já rasgadas que estavam à porta do Farrapeiro. Pegava num afolha com gravuras do Haiti ou da Baía.
E escondia-me de todos a imaginar como seria o Mundo.
As pessoas do Mundo eram muito lindas.
Nenhuma se parecia com a Claudina lá da rua que tinha a cara enrugada como o tronco dum pinheiro e aquele olho torto temível.
nem vestiam de preto como as avós de todos nós.
Traziam, sim, frutas à cabeça, como se fossem chapéus: bananas, peras, uvas e ananases. As nossas mães traziam canecos de água à cabeça e um balde pela mão, pois não havia senão água na fonte do Casal.
As pessoas do mundo estavam sempre a dançar, a dar beijos e a rir.
Mas o meu mundo não era bonito.
O chão da nossa casa tinha tábuas partidas e a minha Mãe todos os Sábados recortava jornais para decorar a parede da cozinha que o fumo do fogão a lenha tinha escurecido. Aquelas figurinhas geométricas que a tesoura dela recortava de cor e salteado, davam uma alegria à cozinha, punham uma nota musical na nossa vida. Era uma maneira de fazer de conta que também tínhamos coisas bonitas e vistosas.
Mas a lavagem do chão com o sabão amarelo e uma vassourinha pequena que ela furiosamente teimava em esfregar, cansava-a. E tossia, tossia.
De joelhos no chão, olhava então para mim, e mandava-me ir jogar a bola para a rua.
Pelo Natal vinha o meu Tio comer as rabanadas e o bacalhau que a minha Mãe já cozinhava à longas horas.
Ele trazia muita alegria para as nossas noites de Natal. Era uma voz grossa, alto, brincalhão.
Trazia um ou dois bonecos de baquelite, que mais barato não havia…
Batizava os bonecos e dava um a mim e outro à minha irmã. Nem esperava pela meia-noite que era a hora de ir ver, debaixo da chaminé, se o sapato tinha alguma coisa. Ele dava logo os brinquedos mal chegava e depois combinava connosco voltar a pô-los no sapatinhos um pouco antes da meia-noite. Dizia ele que o Menino Jesus (ainda não se tinha inventado o Pai Natal) ao ver aqueles brinquedos até ficava contente.
Um par de peúgas era tudo o que nós tínhamos de prenda. Nunca tivemos nada melhor…
Eu era um menino da rua. Da rua de terra batida.
Os nossos brinquedos verdadeiros eram o pião e a faniqueira, o arco e a gancheta e um carro de madeira. Era tudo feito por nós. Não havia loja de brinquedos porque os fazíamos. O dinheiro ia todo na alimentação e no Senhorio. Os rapazes maiores ensinavam os mais pequenos. Martelo e prego. Que os avós emprestavam. Uma bola de pano com meias apanhadas na roupa a secar. No dia seguinte não havia aulas.
A brincadeira tornava o dia mais pequeno. Cada um falava dos seus brinquedos pobres como se fossem maravilhas.
E eram autênticas maravilhas. Quando se partia um brinquedo corriam lágrimas de encher um lago.
Em pequeno nunca vi o pão de ló nem o bolo rei.
Nunca imaginei que pudessem existir.
 
Fernando Morais
 

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