CRIANÇA
COM UM SONHO DE POESIA
Também já fui criança
e ria com força para não chorar
quando meu Pai regressava da Taberna e entrava aos berros pelo Bairro dentro.
Quando fui criança não tive outro
remédio senão tornar-me adulto.
Não havia outra maneira de viver.
Os meus colegas, miúdos lá do
Bairro do Torne, não tiveram oportunidade de saborear as brincadeiras, nem o
feitiço das cores e dos sons, a magia dos sabores e o lento folhear das
estações. Quando era criança andava viciado no SONHO. Era o sonho que me guiava
nos dias.
Imaginava os lugares do Mundo que
vinham nas revistas já rasgadas que estavam à porta do Farrapeiro. Pegava num
afolha com gravuras do Haiti ou da Baía.
E escondia-me de todos a imaginar
como seria o Mundo.
As pessoas do Mundo eram muito
lindas.
Nenhuma se parecia com a Claudina
lá da rua que tinha a cara enrugada como o tronco dum pinheiro e aquele olho
torto temível.
nem vestiam de preto como as avós
de todos nós.
Traziam, sim, frutas à cabeça, como
se fossem chapéus: bananas, peras, uvas e ananases. As nossas mães traziam
canecos de água à cabeça e um balde pela mão, pois não havia senão água na
fonte do Casal.
As pessoas do mundo estavam sempre
a dançar, a dar beijos e a rir.
Mas o meu mundo não era bonito.
O chão da nossa casa tinha tábuas
partidas e a minha Mãe todos os Sábados recortava jornais para decorar a parede
da cozinha que o fumo do fogão a lenha tinha escurecido. Aquelas figurinhas
geométricas que a tesoura dela recortava de cor e salteado, davam uma alegria à
cozinha, punham uma nota musical na nossa vida. Era uma maneira de fazer de
conta que também tínhamos coisas bonitas e vistosas.
Mas a lavagem do chão com o sabão
amarelo e uma vassourinha pequena que ela furiosamente teimava em esfregar,
cansava-a. E tossia, tossia.
De joelhos no chão, olhava então
para mim, e mandava-me ir jogar a bola para a rua.
Pelo Natal vinha o meu Tio comer as
rabanadas e o bacalhau que a minha Mãe já cozinhava à longas horas.
Ele trazia muita alegria para as
nossas noites de Natal. Era uma voz grossa, alto, brincalhão.
Trazia um ou dois bonecos de
baquelite, que mais barato não havia…
Batizava os bonecos e dava um a mim
e outro à minha irmã. Nem esperava pela meia-noite que era a hora de ir ver,
debaixo da chaminé, se o sapato tinha alguma coisa. Ele dava logo os brinquedos
mal chegava e depois combinava connosco voltar a pô-los no sapatinhos um pouco
antes da meia-noite. Dizia ele que o Menino Jesus (ainda não se tinha inventado
o Pai Natal) ao ver aqueles brinquedos até ficava contente.
Um par de peúgas era tudo o que nós
tínhamos de prenda. Nunca tivemos nada melhor…
Eu era um menino da rua. Da rua de
terra batida.
Os nossos brinquedos verdadeiros
eram o pião e a faniqueira, o arco e a gancheta e um carro de madeira. Era tudo
feito por nós. Não havia loja de brinquedos porque os fazíamos. O dinheiro ia
todo na alimentação e no Senhorio. Os rapazes maiores ensinavam os mais
pequenos. Martelo e prego. Que os avós emprestavam. Uma bola de pano com meias
apanhadas na roupa a secar. No dia seguinte não havia aulas.
A brincadeira tornava o dia mais
pequeno. Cada um falava dos seus brinquedos pobres como se fossem maravilhas.
E eram autênticas maravilhas. Quando
se partia um brinquedo corriam lágrimas de encher um lago.
Em pequeno nunca vi o pão de ló nem
o bolo rei.
Nunca imaginei que pudessem
existir.
Fernando
Morais
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