quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

a minha angústia preferida


a minha angústia preferida

nas minhas veias
sinto em certas dias mais sombrios
(nessas noites em que fujo
da difícil sombra de mim mesmo)
o pulsar das ruas
braços pegajosos de uma rede triste
densos frios
a cidade é um vício
rarefação do ar que se respira
noite sem sono que me agarra
invade todo o corpo que transpira
a cidade é o ninho fácil
de todos os pássaros inquietos
espaço de tantas cores
difíceis improváveis
na incapacidade física de as dizer com os olhos
e definir objetos
a cidade é gente
bandos de idades peregrinas
e outros já mais gastos
resistentes na procura
dos motivos dos encontros
os olhos que se cruzam
no virar de esquinas
a cidade é o toque ocasional
anunciação de lugares visitados
casas íntimas de porta aberta
porque perdeste a chave
barcos que se movem
arrastados ao acaso
por ventos desconhecidos
sem mastros sem velas
despojados
a cidade é um riso fácil
mas também é das palavras
e do outro riso que se cala
apenas desenhado
num beijo que se guarda
no copo que se enche
bebe e se repete
até ao trago amargo de ti mesma
em tantas madrugadas
a cidade é o teu corpo
distante e frágil
quase nua
nos meus olhos que te despem
quando se vislumbra ao fundo
na refração da luz
entre brindes e promessas
assim mordida
inteira e crua
a cidade és tu
os teus passos na procura
de uma história que eu perdi
sem ser contada
estilhaçada no teu corpo
carne viva desmontado
um vírus que se instala
contra o tempo
sem ter cura
a cidade é minha
a minha angústia preferida
à noite se não durmo
de manhã quando desperto
dia a dia
noite a noite repetida


Eduardo Leal
in "Colectânea Galeria Vieira Portuense 2012"

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